22 de mai. de 2007

Texto concorrente (revista Piauí) - Daniel Mello



Da carne ao paraíso em uma garrafa
DANIEL MELLO


Havia névoa. Era fina e branca como uma nuvem que tivesse descido dos céus. Ela encobria as feições da pequena estação de trem como um véu. Nos bancos de madeira, todos ocupados, porém, não cheios o suficiente para que as pessoas necessitassem se tocar, velhos, crianças, homens e mulheres sentavam-se resignados, com o olhar distante de quem espera quase sem esperança. Ao meu lado caminhava outra multidão, que se movia, podia se ver isso em todos os rostos, sem saber porque. Simplesmente andávamos em direção a locomotiva que apitava cortando o silêncio da manhã sonolenta.

Um pequeno chinês, de vestes totalmente brancas que se confundiam com o nevoeiro, sorria de maneira simpática e acenava para que entrássemos. Apesar das maneiras gentis, podia-se perceber uma certa pressa em seus modos. Aos poucos todos nós tomamos nossos lugares naquela estranha viagem. Mal tive tempo para pensar o que era tudo aquilo quando um apito alto precedeu a movimentação dos vagões. Tive medo, mas ao meu redor todos pareciam resignados. Na estação as faces continuavam tão inexpressivas como antes. Não parecia haver alma que pudesse me ajudar naquele momento.

Foi quando algo aconteceu. O metal rangeu com a freada do trem. Surgiram de lugar algum, no chão lá em baixo, três homens. Todos de feições orientais, vestindo seda branca. Os dois pequeninos carregavam, meio desequilibrados, um imenso gongo dourado. Quase caíram no chão ao descarregar o peso próximo a minha janela. Alguns perto de mim sorriram da comicidade da cena, um burburinho inaudível flutuou no ar. O terceiro homem, gordo como um lutador de sumô, veio correndo e atingiu o centro do instrumento com um bastão ornamentado. Tamanha foi a força empregada na operação, que toda a armação metálica perdeu sua estabilidade e, devagar, foi tombando para trás. O gongo bateu na lateral da locomotiva e nenhum passageiro arriscou um pio. Reflexo do olhar tão severo com que o homem gordo observava as janelas.

Os dois pequenos chineses correram para dentro do trem. Em menos de um segundo estavam atrás de mim. Cada um me segurou por um braço e sorrindo me tiraram da poltrona. E antes que pudesse perguntar qualquer coisa, fui arrastado pelo corredor, diante dos olhares atônitos dos outros passageiros. A confusão crescia na minha mente. A névoa envolveu o mundo. Os corpos desapareciam na neblina e os rostos boiavam risonhos no espaço. Minha boca amargava a bebida.

Alguém fazia força contra o meu peito. A minha volta uma muralha de pernas. No alto, rostos curiosos. Minha mulher batia no meu peito. Olhou dentro dos meus olhos e riu. O mundo ainda girava um pouco. Surgiram gargalhadas. Tossi uma tosse engasgada. O gosto era de bebida vomitada. Cuspi. Mais risos. Sentei e vi a poça de vomito onde eu estava deitado. De repente, um cheiro revirou meu estomago. Era a garrafa de saquê que esfregavam no meu nariz e embalava mais chacotas. Tossi de novo, cuspi quase golfando. Vomitei mais um pouco. Passaram a mão nas minhas costas. Levantei a cabeça e respirei fundo. Sentia-me como um Jimi Hendrix dolorosamente ressuscitado.


22042007

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